domingo, 14 de março de 2010

O Reino deste Mundo



Escândalo no Distrito Federal mostra que políticos evangélicos continuam caindo em tentação
Por Valter Gonçalves Júnior


Depois que a “Operação Caixa de Pandora”, da Polícia Federal, revelou, no fim de novembro de 2009, as entranhas do governo de José Roberto Arruda (ex-DEM) no Distrito Federal, as palavras “panetone” e “oração” ganharam novos significados. Quando Arruda disse que os R$ 50 mil que aparece recebendo em vídeo seriam para comprar o tradicional pão natalino para os pobres, em Brasília “panetone” virou imediatamente sinônimo de corrupção. No segundo caso, criou-se a expressão “oração da propina”. É que as imagens chocantes de dois deputados de Brasília orando com Durval Barbosa – ex-secretário de Relações Institucionais do governo Arruda e incumbido de distribuir o dinheiro do esquema – foram capazes de dar até ao momento sagrado da conversa com Deus uma outra conotação. E políticos identificados como evangélicos mais uma vez estiveram no meio de um escândalo.
Os deputados da Câmara Distrital Leonardo Prudente (ex-DEM) e Rubens Brunelli (DEM), que aparecem no vídeo, negam que naquele momento estivessem, como veiculado pela imprensa, agradecendo a Deus pela propina do que ficou conhecido como “mensalão do DEM”. Mesmo assim, o contexto é inegavelmente dos mais comprometedores (ver box). Para a advogada




Damares Alves, que há dez anos é assessora jurídica da Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados, situações como essa tendem a repetir-se. O problema, explica, é muito mais grave do que parece. Está na raiz da representação evangélica no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas e câmaras municipais. “O crente é corruptor. Os próprios pastores e crentes corrompem os políticos”, lamenta a assessora, atribuindo parte do problema à enormidade de pedidos de favores e de dinheiro que chegam aos parlamentares eleitos com apoio das igrejas, numa versão evangélica do velho clientelismo brasileiro. “É a política do ‘toma lá dá cá’. É tanto pedido, os deputados são tão cobrados por sua base, que acabam sendo induzidos a isso. Não que os políticos sejam inocentes ou ingênuos”, reconhece. “Mas o deputado recebe voto e depois tem que pagar até lua-de-mel do filho do pastor. E como atender esses pedidos? Enquanto isso não mudar, veremos escândalo sobre escândalo”, afirma Damares.
Ao contrário de parlamentares que representam grandes segmentos sociais e econômicos, que têm suas campanhas eleitorais custeadas por doações mais robustas, os evangélicos, apoiados por redes de pequenas igrejas, já tomam posse pensando em como vão pagar suas dívidas de campanha e manter a base que os elegeu. A saída acaba sendo o clientelismo e a troca de favores, que muitas vezes envolve dinheiro público. Damares observa que esses políticos – que são, na origem, “geralmente um pastor ou um advogado pobre” – acabam sacrificando princípios para manter seus mandatos. “Os parlamentares vão alimentando isso ao longo dos anos”, diz. Em consequência, os evangélicos, quase sempre, ironicamente, integrantes do chamado “baixo clero” do Legislativo, são alvo fácil para os lobistas que circulam em Brasília oferecendo as mais variadas vantagens.


Prova disso, diz a assessora, é o escândalo dos sanguessugas, de 2006. Não por falta de aviso, o caso terminou por atingir metade da bancada evangélica do Congresso Nacional, então de 68 parlamentares. Confessando-se “angustiada”, Damares diz permanecer como assessora parlamentar da frente evangélica por ver nesse trabalho uma espécie de ministério, no qual analisa e dá pareceres a projetos de lei que afetam diretamente princípios ligados à vida. Por mês, diz ela, são analisados mais de 50 projetos diretamente relacionados a temas de preocupação dos cristãos. “Nestes 20 anos de bancada, deveríamos ter avançado muito mais na questão ética”, lamenta. “O que me deixa muito triste é que enquanto isso há tantas frentes, tantas batalhas em defesa da vida e da família. Precisamos, no mínimo, de 100 parlamentares cristãos no Congresso para cuidar de questões como liberdade religiosa, exclusão social, opressão dos pobres, abandono de idosos, aborto, eutanásia, dependência química e tantas outras”, enumera, lembrando que também assessora a Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida.
Omissão da Igreja – O extenso vocabulário da corrupção tem renovação garantida no Brasil.




Cada escândalo traz consigo o dom de mudar o sentido das palavras a ele relacionadas, garantindo assim um novo estoque de piadas – forma encontrada pela população desde a época do Império para expressar seu descontentamento. No caso do uso indevido de cartões corporativos do governo federal, por exemplo, a “tapioca” ficou celebrizada. No caso dos “sanguessugas” – em que parlamentares incluíam emendas no Orçamento para beneficiar a empresa Planan, da família Vedoin –, até a palavra “ambulância” ganhou outra conotação. A lista é longa. Mas “oração da propina” é um termo muito doloroso para os crentes. “O que mais me indignou foi que tudo isso serviu para as pessoas quebrarem o quarto mandamento e usarem o nome de Deus em vão”, diz o presbiteriano Renato Amorim, que sofreu com as gozações no ambiente de trabalho: colegas com quem convive há anos repetiram várias vezes a chamada “oração da propina”, na íntegra.


“Senti-me totalmente desrespeitado e desautorizado”, diz ele, que participou de um dos protestos em frente à Câmara Distrital para exigir o afastamento de todos os envolvidos com o escândalo. Servidor do Superior Tribunal de Justiça, Amorim, que se prepara para fazer na França um doutorado em ciências políticas, disse que iria à manifestação mesmo se o escândalo não atingisse a Igreja Evangélica, como a seu ver atinge. “O escândalo evidenciou a concepção de que é possível agir por meios escusos, obscuros, e sacralizar isso por meio de orações, cultos ou dízimos”, observa. Ele também lamenta que, mesmo chamuscados, os evangélicos em geral tenham se omitido. “A Igreja sofre paralisia. Mesmo quando atacada, como foi nesse caso, ficou totalmente muda, não se defendeu como instituição”, critica. Quanto aos políticos crentes, Amorim diz não se sentir representado por eles, em quem não votou. “Não consigo identificar uma ação efetiva dos evangélicos no campo da política. Eles pensam de maneira religiosa, mas isso é um erro. Pensar em termos políticos significa pensar no quê, como cristaos, podemos conceber de bom também para os que não abraçam a fé”, diz Amorim. No seu entendimento, ao não conseguir dialogar adequadamente com o Estado laico e secularizado, os evangélicos deixam escapar o conceito de “justo” para todos os segmentos da sociedade. “Só se pensa no que é pecado ou não, mas nem isso de maneira séria. Uma concepção política que tenha como meta simplesmente alcançar o poder está fadada ao fracasso”, sentencia.


Um dos coordenadores do movimento Evangélicos Pela Justiça (EPJ), o crente batista Geter Borges tenta reverter a situação. Seu grupo tem acompanhado a tímida reação das igrejas ao escândalo e enviou carta aos pastores de todas as denominações indagando o que pensam sobre a conjuntura política no Distrito Federal. O texto sugere que os evangélicos assinem um manifesto e se mobilizem para pedir o afastamento imediato de todos os envolvidos nas denúncias. “O problema não é ter corrupção no campo evangélico. As pessoas estão sujeitas a mudar de rumo e se afastar da ética. O problema é a omissão diante desse fato, o que termina legitimando isso”, afirma Geter. Para ele, as igrejas devem se manifestar contra a corrupção “de forma massiva”. A cultura evangélica de afastamento das questões sociopolíticas, na sua opinião, contribui para o silêncio em relação à corrupção, assim como aos demais problemas do país. Por outro lado, diz, “a partidarização contamina a Igreja com a cultura de partido”, comprometendo sua voz profética. “A igreja deve lutar contra a cultura do ‘rouba mas faz’ e do ‘bobo é quem é honesto’. E não deve manipular a opinião dos membros e nem comercializar o voto de seus adeptos”, prega.
Geter salienta que o caso Arruda mostra que há um problema estrutural a ser enfrentado: a independência com que agem os políticos depois de eleitos, só prestando contas à população a cada quatro anos: “O eleitor tem como única alternativa esperar o dia da eleição chegar e trocar os representantes, que depois irão agir da mesma forma”. Ele lembra que o afastamento do governador depende da Câmara Distrital, também atingida pelas acusações, e aponta para a morosidade do Judiciário. “A gente precisa enfrentar esse elemento estrutural. Sem isso não vai conseguir avançar na democracia”, declara ele, que trabalha como assessor parlamentar da bancada PT na Câmara dos Deputados.


Resgate ético – O pastor Isaías Lobão, professor de teologia e atualmente membro da Igreja Presbiteriana de Cruzeiro Novo, em Brasília, vai na mesma linha. E não mede palavras. “Se a gente for olhar a prática das igrejas, a gente não é crente, não. A ética dos evangélicos não tem sido diferente da mundana. Esses grupos neopentecostais, especialmente, se adaptaram ao pior da cultura brasileira. Não é novidade”, afirma. “A chamada ‘oração da propina’ pode não ter sido diretamente relacionada ao pagamento da propina em si, mas agradecia pelas bênçãos que vinham através do Durval”, salienta, sublinhando o argumento de uma suposta “perseguição” é sempre evocada pelos crentes colhidos em situação escandalosa.
Isaías pede atitude “mais protestante’ e critica o silêncio da maioria das igrejas, o que para ele sugere cumplicidade. O pastor aponta ainda a “omissão dos bons”, que permitiria que o espaço na mídia, na política e na sociedade seja tomado por pessoas sem representatividade e despreparadas. “A quem esses deputados representam?”, indaga. Além disso, rebate a “teologia duvidosa ou truncada” dos envolvidos em escândalos, na maioria ligados à teologia da prosperidade. Segundo observa, ao estilo do velho catolicismo, repete-se com frequência o versículo “não toqueis nos meus ungidos” para evitar o debate crítico. “Mas a Reforma protestante tornou o pastor não um sacerdote intocável e infalível, mas um docente, alguém que ensina a Palavra e deve vivê-la”. Por outro lado, diz, a Igreja tem abandonado as suas marcas, dentre as quais a disciplina aos que cometem erro. Para Isaías, resgatar a ética não é uma batalha perdida, mas depende da mobilização individual, em todas as denominações, para pressionar as lideranças. E diz ser preciso fugir do pragmatismo fácil da adaptação acrítica à cultura brasileira e democratizar as igrejas, que hoje contam com líderes autocráticos, que não admitem críticas e contestações. “Falta lastro doutrinário com a reforma, que coloca a Bíblia como guia de fé e prática”, conclui.


Suspeitos preferem o silêncio
As igrejas não tiveram uma reação única à divulgação, em dezembro, da chamada “oração da propina”, em que dois deputados oram com Durval Barbosa, pivô do escândalo no Distrito Federal. Em grande parte, elas não tomaram posições públicas. Quando o vídeo foi divulgado, a católica Confederação Nacional dos Bispos do Brasil e a Igreja de Confissão Luterana do Brasil condenaram os envolvidos no episódio. No dia seguinte, em nome da Ordem dos Ministros Evangélicos do Gama, cidade-satélite do DF, o pastor Osesa de Oliveira entrou com um pedido de impeachment contra o governador José Roberto Arruda e o vice Paulo Octávio, e de afastamento dos deputados Leonardo Prudente, da Igreja Sara Nossa Terra, e Rubens Brunelli, da Igreja Casa da Bênção, bem como dos demais acusados no inquérito da PF.
Ex-secretário do Trabalho do governo do Distrito Federal – cargo que deixou em julho –, o bispo e fundador da Igreja Sara Nossa Terra, Robson Rodovalho, que também é deputado federal, não foi citado no inquérito que acusa o governador e vários de seus assessores. Rodovalho, que era do DEM, hoje está no PP. Por meio de nota, a Sara Nossa Terra declarou repúdio a “todo desvio ético e a toda forma de corrupção”. O texto afirma que, no caso dos religiosos envolvidos no escândalo, “o dano é maior porque cabe a eles ser luz do mundo e sal da terra”. Lembrando que Rodovalho não foi implicado “nem indiretamente” nas investigações, sua assessoria de comunicação disse à revista CRISTIANISMO HOJE que o bispo “tem compromisso com a




Palavra de Deus e com os valores do Reino de Deus”.
Além disso, a assessoria declarou que Leonardo Prudente foi da Sara Nossa Terra, mas nunca teve nenhum cargo de liderança. Prudente foi flagrado escondendo na meia dinheiro recebido de Durval Barbosa. Mesmo assim, segue como presidente da Câmara Distrital. Rubens Brunelli, por outro lado, recebeu apoio da Igreja Casa da Bênção, que chegou a divulgar que o deputado estava, na verdade, orando pela justiça e contra a corrupção no DF. Segundo o pastor Caio Fábio D’Araújo Filho, hoje radicado em Brasília e dirigindo a igreja Caminho da Graça, Brunelli o procurou para negar que, na chamada “oração da propina”, estivesse agradecendo por ter recebido dinheiro de corrupção.
Procurados por meio de sua assessoria, os deputados, que voltavam do recesso parlamentar e terão a missão de julgar o pedido de impeachment contra Arruda, não responderam à reportagem de CRISTIANISMO HOJE.


O governador José Arruda é o principal suspeito investigado pela Caixa de Pandora


A Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal, revelou em detalhes como a corrupção se tornou prática comum na política do Distrito Federal. Escutas autorizadas pelo Superior Tribunal de Justiça e transcritas em extenso inquérito mostram o governador José Roberto Arruda negociando abertamente com assessores a distribuição de dinheiro proveniente de contratos superfaturados. Os pagamentos eram feitos pelo então secretário de Relações Institucionais do governo do DF, Durval Barbosa, que colaborou com as investigações em troca da delação premiada e já operava desde o governo anterior, de Joaquim Roriz.
De acordo com o inquérito, entre os beneficiários do esquema estariam o govenador, o vice Paulo Octávio, grande parte dos deputados distritais – incluindo o presidente da Câmara, Leonardo Prudente –, além secretários de governo, empresários, donos de jornais e até membros do Ministério Público do DF. Em sua defesa, Arruda, desfiliado do DEM, disse que a aparelhagem da PF estava com defeito. Além das escutas autorizadas da PF, alimentam o escândalo horas de fitas de vídeo gravadas em 2006 pelo próprio Durval. Em resposta à cena em que aparece recebendo R$ 50 mil, Arruda disse que o dinheiro seria usado para compra de panetones para os pobres.


Tragédia anunciada


“Deputado, eu quero abençoar a sua igreja e seu trabalho social”. Assim o empresário Darci Vedoin, dono da Planam, e seu filho Luiz Antônio abordavam parlamentares evangélicos em seus gabinetes. E simpáticos, como quem não quer nada, muitas vezes doavam dinheiro e ambulâncias fabricadas pela empresa. Corria o ano de 2003 e, desconfiada, a assessora jurídica da Frente Parlamentar Evangélica, Damares Alves, advertiu com insistência os integrantes da bancada contra a estranha abordagem dos Vedoin. Ela falou com assessores e deputados, antes mesmo de saber que o Ministério Público (MP) estava com o caso na mira. Ao ter confirmadas as suspeitas, Damares reforçou os avisos. “Fiz uma maratona. Fui aos gabinetes. Eles todos foram orientados. Senadores e deputados”, relembra.


A estratégia do empresário consistia em negociar com parlamentares a inclusão de emendas no Orçamento da União para a compra de ambulâncias. Para levar a comissão no negócio, os próprios parlamentares se transformavam em agentes da Planam, fazendo lobby junto a prefeitos para que, nas licitações, terminassem por comprar as ambulâncias da empresa. No fim, os Vedoin, em troca da delação premiada, entregaram à Polícia Federal e ao MP uma extensa lista com os nomes dos políticos que entraram em seu esquema. Na bancada evangélica, foi um estrago. Nem mesmo com os avisos de Damares os parlamentares deixaram de aceitar a “bênção” dos Vedoin. Em 2006, quando explodiu o escândalo, a bancada foi dizimada. Dos 68 integrantes, 34 foram acusados pelo MP de envolvimento com a máfia das ambulâncias. Como numa corrente, um parlamentar havia puxado outro para o esquema.